sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Sopro

Vejo que tudo se acaba. Tudo está se acabando aos poucos, em poucos sempre maiores, cada vez maiores. Tudo é vento, ora forte, ora lento, mas sempre incerto, é sopro, acaso fatídico, verso do ideal estável, imaginário, imaginado. Permaneço imóvel, imune às variações sutis que me sugerem outros, bem outros, diferentes de mim, de um eu diferente deles que creio ser. Decidi despreocupar-me, desocupar-me, desalojar-me. Fiquei à margem, fico à margem. Lugar impróprio, acidental talvez. É esta minha utopia, o não-lugar de minha inabitação, decidida indecisão.

Onde está minha (in)consciência? No que penso quando fico em silêncio, livre para escolher meu pensamento, meu passatempo autônomo e secreto, anônimo, expatriado da voz palavra verbo texto, silêncio, silencio. Questiono, não minha existência, mas minha inconsistência, incoerência cômoda, talvez, voluntária, sim, voluntária e arbitrária. Eis aí mais uma incoerência. A arbitrariedade não é parte de mim nem me parece coerente com qualquer possível coerência, consistência que tento ter, sem saber, sem querer, sem a querer diretamente. Chamem-me de louco, de volúvel, volátil. Não temo adjetivos. Aliás, agradam-me muito, revelam as personagens que moram no imaginário estranho, estrangeiro, são histórias, ficção involuntária, fricção, atrito, calor oportuno e contrário à própria gênese, invento fadado ao fracasso enquanto nutre um outro invento, desambiguação provocada por denúncia sempre alheia, olhar de outro sempre bem vindo, olhar amigo do inimigo, contradição inviolável, inevitável, necessária à necessária correção do justo que se crê justo impropriamente.

Perdoem-me a confusão. Não, não me perdoem, guardem para si, os outros, suas insatisfações, mas não as mágoas. Sirva-lhes o que digo de lição, lição que também eu aprendo de pouco em pouco enquanto marco aqui, neste traço, a transição. Prefiram não violar a diferença, a agressão invisível, inevitável e cruel do que é outro, um tu totalmente outro e diferente de qualquer eu, de qualquer pessoa e diferente de si, outro eu refletido e imaginado, adjetivado noutro tu, um eu e um tu que se percebem diferentes um do outro e redescobrem nisto a própria identidade sempre nova quando (re)feita a identificação, o contraste, a desambiguação.

Está aqui a minha margem, limite inabitável, meu lugar. Fico na margem, à margem, na diferença, violação do padrão, transgressão da rotina, na invenção. É minha casa literária, imaginária e mais real do que o real que é visto, é rastro, marco, inscrição de mim no tempo, num tempo, noutro tempo infindo, recordado, recortado do presente-passado já passado, futuro também inscrito, escrito de mim, escavado em mim, de mim parcela arrancada, dobra de pensamento infindo que se desdobra num outro espaço que viola o tempo e o próprio espaço, palavra, fronteira entre a ignorância e a loucura. Arrisco-me aqui, risco que faço e corro, traço, traçado, caminho, eu. Não me furto à palavra dita aqui, sem voz, sem som, sem tempo ou sucessões, sem repetições, sem eco ou ressonância, palavra escrita, marcada num tempo já não presente e presente, sempre. Não me ausento, mas fico ausente, ignorante de tudo o que daqui será tirado, violência, violação, traição da intenção primeira, já extinta e viva, bem viva, alimento da curiosidade alheia e gênese de intenções estranhas, inventadas, atribuídas falsa e veramente, criação perpétua do traço marcado, passado futuro gravado, guardado em pensamentos que ainda serão, fortuito acidente da inscrição.

Não creiam que seja eu este eu que fala, eu inscrito e escrito, expulso de mim, marcado, gravado aqui. Sou e não sou, um duplo de mim deixo aqui, diverso também de mim, escrevo um outro, espelho que revela-me ainda um outro, bem outro que de mim sabe e faz-me saber um pouco, aos poucos. Tantos eus falam, falam de si, de mim, e tornam-se assim também quem lê, um tu que não vê, que não vejo, tu, outro eu também agora. Ponho-o aqui, eu e tu, espelhos que se veem a si mesmos num abismo, abismo infindo, infinito, lugar melhor de ficar, limite, margem, fronteira, meu não-lugar.